Batotas que temos
como evidentes
“A Constituição americana – até hoje considerada como um dos melhores
textos jurídicos jamais escritos - enumera
o que os Founding Fathers chamaram de
«verdades que temos como evidentes». “
Miguel Sousa Tavares, A Bola, 12
de outubro de 2010
Aparentemente, há juristas que
lêem a Constituição americana sem o cuidado que é devido a um dos melhores
textos jurídicos jamais escritos. Na verdade, não é a Constituição americana
que enumera aquilo a que os Founding
Fathers chamaram verdades que temos
como evidentes. Essas são enumeradas na Declaração de Independência, que
foi escrita uma boa década antes da Constituição. É, então, na Declaração de
Independência que os chamados países fundadores dos Estados Unidos expõem as
verdades que consideram evidentes: que todos os homens são criados iguais, que
são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, e que entre esses
direitos se contam o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Uma
das verdades que não é evidente, quer para a Constituição, quer para a
Declaração de Independência, é que os cidadãos tenham o direito inalienável de
não serem escutados. Como é evidente, todos os cidadãos têm o direito à
privacidade - mas esse direito não é absoluto. E a magnífica lei americana
permite o uso das escutas como meio de investigação, assim como a lei
portuguesa. Que horror! Mas não era a PIDE que também escutava? Era. Se bem me
lembro, a PIDE também prendia e, apesar disso, no regime democrático há quem
continue a ir preso. A diferença é simples, mas parece que é difícil de
entender: a PIDE escutava e prendia arbitrária e ilegitimamente, como é próprio
das polícias políticas das ditaduras; a polícia das democracias escuta e prende
justificada e legitimamente, como é próprio do Estado de direito democrático. O
mais intrigante, no caso das escutas do Apito Dourado, é o facto de haver
discussão quando, afinal, estamos todos de acordo. Por exemplo, estou de acordo
com Miguel Sousa Tavares quando, depois de José Sócrates lhe ter dito que não
devíamos conhecer o conteúdo das escutas do processo Face Oculta, respondeu: “Mas
conhecemos. Eu também acho que não devíamos conhecer, mas conhecemos. E, uma
vez que as conhecemos, não podemos fingir que não conhecemos. Eu, pelo menos, não
posso”. (http://www.youtube.com/watch?v=RlWI8t7JY6Y&t=08m07s).
E estou de
acordo com Rui Moreira, quando ontem confessou aqui a razão pela qual comentou
as escutas que envolviam o nome de José Sócrates: «(...) limitei-me a não
ignorar o que era público, ainda que resultasse de uma ilegalidade. Ninguém se
pode alhear do que é público e das suas consequências». A única diferença é que
eu tenho essa opinião relativamente a todas as escutas, e não em relação a
todas menos as do Apito Dourado. Também acho que não devíamos conhecer a escuta
em que Pinto da Costa combina com António Araújo oferecer fruta para dormir ao
JP, mas conhecemos. E, uma vez que a conhecemos, não podemos fingir que não
conhecemos.
Eu, pelo menos, não posso. Quando
comento a escuta em que Pinto da Costa dá indicações a um árbitro para que vá a
sua casa nas vésperas de um jogo, limito-me a não ignorar o que é público,
ainda que resulte de urna ilegalidade. Até porque ninguém se pode alhear do que
é público e das suas consequências. Além disso, note-se, até concordo com MST
quando diz que as escutas vieram a público nesta altura por causa do Porto-Benfica.
O objectivo é prejudicar o Benfica: os jogadores que tiverem conhecimento das
escutas ficam a saber que, por mais que se esforcem, se o árbitro estiver
trabalhado não têm hipóteses de ganhar. Desmoraliza qualquer um.
Rui Moreira desfez-se em explicações
para justificar que comentar umas escutas é um acto legítimo e comentar outras
é uma vileza sem nome. Agora que foi despedido, talvez Rui Moreira tenha mais
tempo livre para entrar num negócio que gostaria de lhe propor: formarmos um
circo. Como ele já aqui tem sugerido várias vezes, eu seria, evidentemente, o
palhaço. Ele seria o contorcionista. Não são muitos os artistas que se podem
gabar de ter um número tão bom como o dele. A única maneira de Rui Moreira e
MST comentarem uma escuta de Pinto da Costa é o presidente do Porto ser
apanhado numa conversa telefónica com José Sócrates. Mesmo assim, suponho que
fizessem um comentário misto, debruçando-se apenas sobre intervenções de
Sócrates: “Esta intervenção de Sócrates reforça a nossa desconfiança nele.
Agora temos uma parte do telefonema que não devíamos conhecer e temos nojo de
quem a comenta. Agora está Sócrates novamente a fragilizar a sua credibilidade.
E agora temos mais uma parte da conversa que é indigno estarmos a ouvir”.
Umas coisas são picardias
maliciosas, típicas do mundo do futebol; outra, bem diferente, são ofensas. E Villas
Boas ofendeu-me gravemente numa conferência de imprensa que deu esta semana.
Disse que as minhas crónicas eram as únicas que gostava de ler porque eu o
fazia rir. Sinceramente, creio que não merecia o insulto. Todas as semanas faço
aqui o melhor que posso para provocar Villas Boas. Já recorri a tudo: sarcasmo,
ironia, escárnio, simples sacanice. E Villas Boas tem a repugnante nobreza de
carácter, o asqueroso desportivismo de achar graça. Para ele, se bem percebo,
isto do futebol é a coisa mais importante do mundo para todos, mas no fim acaba
por ser um jogo de que nos podemos rir juntos, seja qual for o nosso clube.
Simplesmente infame. Exijo que passe a ter o fair-play de um Rui Moreira, que gosta muito de piadas desde que
não sejam sobre ele. Obrigado.
Ricardo Araujo Pereira, 16 de Outubro in Jornal A Bola