António Araújo e judeus do século XVII:
vítimas diferentes, a mesma ignomínia
“Obviamente,
o João pode ser o João não podia ter sido nomeado para
este jogo”
Rui Moreira, A Bola, 13 de Agosto de 2010
Embora quase
ninguém tenha dado por isso, há cerca de dois meses foi cometido um crime
nestas mesmas páginas. Não é segredo para ninguém que a divulgação do conteúdo das
escutas é proibida. Ora, quando usou a expressão o João pode ser o João, Rui
Moreira estava, como se sabe, a citar propositadamente uma escuta em que
intervém o presidente do Benfica, publicitando o seu conteúdo. Trata-se de um
comportamento completamente inaceitável e extremamente pidesco. E vice-versa.
Pela minha parte, devo dizer que não participo em autos de fé, e não posso
continuar a colaborar passivamente num jornal que se transforma num auto de fé.
Não tenho, por isso, outra alternativa senão abandonar esta crónica durante
dois parágrafos.
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Creio que a minha posição ficou
clara, e espero que esta atitude simbólica contribua para moralizar o debate
futebolístico e o próprio mundo em geral. Lamento ter chegado a este ponto, mas
o caso é mais grave do que parece: Rui Moreira é reincidente neste tipo de
conduta vergonhosa. No dia 26 de Fevereiro de 2010, o jornal i colocou a várias
personalidades a seguinte pergunta: Depois dos episódios recentes relacionados
com as escutas e o caso Face Oculta, mantém a confiança no primeiro-ministro? A
resposta de Rui Moreira foi: «O primeiro- ministro tem que ser um factor de
confiança perante o exterior e agora acho que passou a ser um factor de
desconfiança perante o exterior». Sei que o leitor está tão chocado como eu.
Rui Moreira não faz qualquer comparação entre a Santa Inquisição e as escutas
(que todos os historiadores acham parecidíssimas), não condena os bandidos que
as publicaram, nem se demarca da porcaria, da canalhice e da insídia. Não só
conhece as escutas como as comenta, tendo mesmo o descaramento de tirar
conclusões com base no seu conteúdo. Repugnante. Quando é que esta gente
compreende que, nisto das escutas, tudo é indigno (menos o que lá é dito)?
Entretanto, parece que houve
problemas no Trio d'Ataque, da RTPN. Não costumo assistir mas, ao que me
disseram, um dos representantes do Porto no programa abandonou o estúdio — o
que acabou por beneficiar o clube. Segundo ouvi dizer, a cadeira vazia teve, no
resto do debate, uma postura mais sensata e digna do que o seu ocupante habitual
costuma ter. Até nisto têm sorte, os portistas. Evidentemente satisfeitos com a
nova representação, os responsáveis da SAD do Porto emitiram um comunicado no
qual afirmam que o clube «não apoiará qualquer sócio ou adepto que venha a ser
enquadrado como representante do clube, nem lhe prestará qualquer tipo de
informação, pelo que todas as suas posições serão sempre pessoais» Na tentativa
de manter a excelente cadeira como representante, o Porto decreta um blackout
preventivo a um possível futuro comentador. Percebo a intenção, mas gostava que
a RTPN arranjasse um substituto. Sem desprimor para os porta-vozes oficiais,
seria refrescante ver um comentador do Porto cujas posições fossem, desta vez,
sempre pessoais.
OS adeptos de futebol assistiram
, na semana que passou, a um fenómeno meteorológico interessante. Todos
conhecia mos o fogo-de-santelmo, uma luz provocada por descargas eléctricas na
atmosfera, observada frequentemente pelos marinheiros. Parece mesmo fogo, mas
não é. «Vi claramente visto o lume vivo», diz Camões n’Os Lusíadas. Esta
semana, Portugal conheceu o penalty
de Santeimo. Vi claramente visto o
penalti nítido, teria dito o poeta, se tivesse escrito a epopeia do futebol
português (e em hendecassílabos). De facto, na segunda- feira, o penalty era claríssimo. «São muitos dos
meus jogadores a dizerem que é demasiado claro», declarou Villas-Boas. Apelou a
que toda a gente metesse pressão na
TVI para mostrar as imagens que, por capricho ou conspiração, se recusava a
transmitir. «77:53!», bradava o director de comunicação, sem que se percebesse
ao certo se estava a indicar um minuto do jogo ou um versículo da Bíblia que
anunciava que o fim estava próximo para todos os que não vissem o penalty. As imagens, por manifesta má
vontade, é que teimavam em não mostrar nada. Passou um dia. Deve ter havido
reuniões. Que fazer? Atacar a credibilidade das imagens? Se as escutas não
podem ser aceites como meio de prova, era o que faltava que as imagens pudessem
sê-lo. Não, está muito visto. Não havia alternativa: era mesmo preciso fazer um
mea culpa. Afinal, 24 horas depois,
as buscas terminaram e o penalty não apareceu. O que era claríssimo passou a
inexistente. Pois bem, devo dizer que não concordo. Na minha opinião, André Villas-Boas
tinha razão na segunda-feira à noite. O lance que ocorre aos 77 minutos e 53
segundos do Guimarães - Porto é mesmo penalty.
Trata se de uma jogada em que nenhum jogador adversário comete qualquer infracção
às leis do jogo. Normalmente, é o que basta para ser penalty a favor do Porto. Há jurisprudência neste sentido. As
regras do futebol são uma coisa, a tradição é outra. Um jogo em que o árbitro
se limita a perdoar um penalty ao
Porto e a protelar a expulsão do Fucile durante vários minutos continua a ser
um escândalo, e não há imagens que me convençam do contrário.
No final do
jogo, nem todas as declarações foram absurdas. «Vou ficar atento para saber se
este árbitro vai de férias», avisou Pinto da Costa. Ora até que enfim. Não foi
precisamente por falta de atenção às férias dos árbitros que certas facturas da
Cosmos que foram pagas por engano?
Pode ser que alguma coisa esteja a mudar.
Ricardo Araujo Pereira, 9 de Outubro in Jornal A Bola